Armários habitados
- Thomaz Chaves Della Vechia
- 14 de nov. de 2024
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Thomaz Chaves Della Vechia

As experiências que nos são mais íntimas nem sempre são só nossas. Apesar da força que me impele a singularizar minha posição – inclusive pela natureza do meu trabalho de escuta que se serve tão bem da busca pelo inédito e pela dimensão assimétrica e intransferível da vida –, existem acontecimentos que só ganham nome e lugar na medida em que os compartilhamos, em que sua face mais brutal se torna marco temporal coletivo. Escrevo àqueles e àquelas que, como eu, também foram chamadas de bicha antes de poder ou querer se ajeitar nas dobras dessa palavra.
Resgatar as histórias primeiras da nossa bichice, e assim o digo sublinhando que essa condição também nos foi imposta, faz pensar em andanças minhas, assim como de muitas outras criaturas que foram assim determinadas, por territórios hostis, em busca de sombras por onde acender em segurança nossas lanternas, como vaga-lumes cujo erotismo ganha vida nesse fremir de luzes passageiras¹. É claro que algumas de nós sobreviveram a essa interpelação – bicha! –, outras não.

Compartilhamos o recebimento de um nome antes de sequer saber o que ele presenteia ou o que reflete. Reconhecida a violência do ato e o recuo que ele impõe às crianças viadas, em muitos casos é também um lançamento a um tempo íntimo em que bolamos estratégias contra a precariedade que, ainda que de forma desigual, nos é designada. A esse tempo, bem, podemos chamar de tempo do armário, uma “presença formadora”² que regulará a matemática impossível entre o privado e o público, uma vez que nem sair ou ficar no armário garantem, em si, proteção e direito à existência. Outro jeito de dizer é que tomar chuva não ensina ninguém a se secar ou a se proteger nas mesmas marquises. Conosco, o mesmo, e a clínica nos mostra que para cada bicha apontada há um sujeito atravessado pelo trabalho psíquico que esse ato convoca.
Não escrevo, no entanto, com a intenção de teorizar sobre o poder espectral da homofobia e suas artimanhas, como lembra Anzaldua³, para nos fazer temer a volta para casa. Mas o armário nos põe a escrever; conhecemos muitos deles ao longo da vida, pois eles se situam precisamente no laço com cada personagem com quem nos relacionamos. Sejam mais apertados ou espaçosos, mais parecidos com jaulas ou com refúgios, armários são lugares em que algo pode ser deletado, expurgado, mas também onde, muitas vezes, sobrevivemos e achamos canto para nossas relíquias. São lugares, portanto, onde muitas escritas são possíveis – serenatas, planos de fuga, manifestos, cartas de despedida… A lista é longa.
Se me disponho a falar sobre o armário e suas coreografias, também quero falar das roupas. Lembro perfeitamente do dia em que, muito pequeno, me dei por conta de que as roupas (algumas, certamente não todas) tinham o poder de me tornar belo. E foi um grande encanto me olhar no espelho com um conjuntinho bege, onde nas minhas costas figurava uma linda onda, imagem idílica de um paraíso. Rastros da minha bichice? Certamente. Não demoraram em apontar para as pegadas deixadas nas minhas idas e vindas do armário, assim como para os sinais deixados pelas escolhas que eu tinha escrito lá dentro.

A psicanálise se interessa muito pelo que se passa no momento de encontro da criança com a sua imagem, ofertada não só pelo espelho do quarto mas pelo que lhe devolvem os outros a respeito de sua presença. No meu caso, o que esse encontro provocou foi o estranho entendimento de que é possível, ao mesmo tempo, tapar-me e mostrar-me. Escolher um traje, como escolher um nome, é uma defesa e uma partilha, dimensões que nem sempre se excluem.
Foi Patrice Maniglier⁴ quem falou que uma das promessas da antropologia é devolver-nos uma imagem de nós mesmos na qual não nos reconheçamos. Ouso adicionar que essa descrição também cabe às infâncias diversas. Isso porque nem minha inclinação para o feminino ou o viado que encontraram em mim são coisas nas quais não pude, eventualmente, me reconhecer. Pelo contrário, são as crianças viadas que devolvem uma imagem para a cidade, a família e a escola onde elas, em sua normatividade, não podem se reconhecer. Causamos uma comoção, uma fragmentação. É o nosso poder.
Por sorte, acredito que à psicanálise também cabe a tarefa de devolver-nos essas imagens, ainda que de maneira a produzir encontros criadores e emancipatórios. No entanto, isso não está garantido, sobretudo pela familiaridade histórica das práticas clínicas, incluindo aqui a psicanálise, a voltar-se à dimensão íntima e do segredo sem necessariamente reconhecer-se como instituição partícipe na própria formulação social das armarificações.
Armarificar-se é sempre simultaneamente um ato íntimo e um ato coletivo, pois nada circula entre o público e o privado sem a baliza dos discursos que qualificam a norma e a dissidência, assim como todos os outros binômios constitutivos das instituições de reprodução social no ocidente – sujo/limpo, verdadeiro/falso, doença/saúde… É preciso verificar o poder que nos é outorgado enquanto profissionais da saúde, cientistas ou psicanalistas: são esses saberes que, na prática dos serviços e no dia-a-dia das instituições, tem o poder de carimbar os modos de vida como inteligíveis ou abjetos.
Afirmar a diversidade, no nosso contexto, não significa forçá-la à sua afirmação, escancarar armários ou eliminar as sombras e meandros que dão realidade às nossas escolhas, atitudes que são tão violentas quanto os mandatos de expurgo das sexualidades na vida pública. Pras parceiras nesse ofício, a proposta: tenhamos a delicadeza de visitar os armários alheios só quando o convite nos é feito. Que nossa escuta se valha da experiência do sigilo e da intimidade não significa que as portas do armário percam suas fechaduras ou se tornem vitrines. Como vimos, há uma ética em destruir armários, mas também há em construí-los quando se fazem necessários e isso pode – e vai! – se atualizar no estabelecimento das transferências que dão possibilidade ao trabalho.

É em transferência que convidamos alguém a visitar nossos armários, mas também convidamos à retirada, para que sejam possíveis outros passeios. Dá pra chamar de resistência, mas há ainda outras palavras para qualificar os tempos em que avançamos e recuamos diante de escolhas, em que silêncios se impõe para apontar novas passagens. Há quem receba a honra de visitar esse lugar do Outro que é meio santuário, meio limbo. Mas também há quem jamais passará por lá. Quando for o caso, não esquecer que são nesses lugares malditos que borbulham também magias e alquimias bastante poderosas.
Referências
¹ DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, v. 119, 2011.
² SEDGWICK, Eve Kosofsky. "A epistemologia do armário." Cadernos pagu (2007): 19-54.
³ ANZALDÚA, Gloria. 1987. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute.
⁴ MANIGLIER, Patrice. La parenté des autres (À propos de Maurice Godelier, Métamorphoses de la parenté). Critique, n. 701, p. 758-774, oct. 2005.
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