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Sempre começamos com um problema de tradução

  • Foto do escritor: Victória Kniest
    Victória Kniest
  • 29 de mai.
  • 4 min de leitura

Victória Kniest


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É claro que as naturezas dessas traduções se modificam. Mas o trabalho todo inicia na impossibilidade de traduzir o mundo. As palavras alcançam até ali, mantendo sempre uma distância insegura da coisa. Do real que compõe a angústia, da instância do eu que solicita certas estabilidades, da dificuldade mesmo de sustentar a comunicação entre duas línguas na própria língua. Afinal, quem nunca se sentiu estrangeiro na própria língua materna durante uma conversa difícil?

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Quando digo amor, um mundo (uma cadeia representativa) se coloca diante de mim. O que também significa dizer que o sentido é atravessado pelo particular, infinito particular (1). Eis que é sempre assim. E quando escrevemos sempre a ordem simbólica coloca suas regras, embora precisemos de certas traduções para falar com o outro (2). Como expressar essa experiência particular de se traduzir na linguagem do outro? Ou se situar na experiência de tentar traduzir o outro?


A tarefa da tradução é um trabalho entre particular e universal. A língua portuguesa, como outros idiomas, é composta por leis e sentidos universais: a regra gramatical e o significado estabelecido no dicionário. Entretanto, subvertemos isso diariamente a partir do momento que "somos gente".


Falemos do gênero, essa coisa que fazemos. A natureza de traduzir a experiência de gênero é problemática. E é aí que situa outro problema de tradução. 

Lembremos que Butler nomeou seu livro como "Gender Trouble" (3) para situar questões como estas, a relação entre o universal e o particular da experiência de gênero que é da ordem do ato. Fazemos gênero todos os dias, assim como somos feitos de gênero. E nessa feitura situa um trabalho difícil de traduzir a instabilidade para uma categoria estável. Dizendo de outra forma, como fazer caber a ânsia de desejar a si e ao outro em algo pré-estabelecido? 


Para o português, o livro foi traduzido como "Problemas de Gênero" (4), uma tradução que gerou consequências na compreensão da obra de Butler no Brasil. Compreendido como esses problemas que o gênero causa, no plural, desencadeou outras compreensões de uma questão que foi colocada no singular. O gênero é um problema singular, pois é uma questão do particular ao ser demandado de forma universal. Dar um nome aquilo que se sente ou aquilo que nos representa é em si um problema de gênero no singular. Afinal, situa a mesma pergunta: como traduzir um desejo que não pode em si ser nomeado? Nomear a ordem instituinte não faz isso virar instituído. Embora essa nomeação nos auxilie na relação do universal e o campo da política, por exemplo.

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É com esse problema que construímos nossos mundos, nossa maneira de nos contar (outras cadeiras representativas) que subvertem o universal. Dessa forma, evoco a difícil experiência da heterossexualidade que por ser compreendida normativamente como uma experiência universal, não há uma demanda de singularizar essa experiência, contar de si sem que as estruturas universais se antecipem. Ou lembro também da própria experiência cisgênera, que ao ser pressuposta como natural pelo discurso limitante da medicina, muitas vezes não entra como uma narrativa singular. Podemos também pensar sobre as homossexualidades, as transgeneridades ou sexualidades não-conformativas com suas problemáticas em relação ao problema universal do gênero. Como situar a experiência do singular?


Tenho a hipótese de que o efeito dessa tradução do livro de Butler aqui no Brasil  (do singular para o plural) materializa os problemas que os gêneros não-normativos enfrentam diante da violência brasileira. É a violência que se situa no plural, pois são inúmeras, complexas e cotidianas. E é nesse ponto que o argumento de Butler localiza esses efeitos de violência como parte do problema de gênero.


O gênero enquanto um problema instável frente a demanda universal de estabilidade implica em coerção para que a feitura genérica se mantenha como repetição. Experiências genéricas de gênero podem ser vividas de inúmeras formas (hetero, homo, cis, trans, não-conformativo, pan, etc, etc), mas é claro que nosso famoso papai-com-mamãe, a mitologia freudiana do Édipo, sustenta em si uma produção genérica da neurose. Acho importante lermos as proposições de Freud enquanto mito (5), pois assim não corremos o risco de colocar o bebê fora junto com a água do banho. Isto é, há algo interessante no Complexo de Édipo como Freud (6) o descreveu, com suas afirmações cisheteronormativas! Dizendo de outra forma, acredito que não precisamos encarar com pudor o texto, porque é ali que está a fórmula da experiência genérica de gênero no campo social, e que se situa ainda muito viva. 


Acredito que contemporaneamente o problema, no campo da psicanálise, é justamente não situar o texto de Freud enquanto uma mitologia e sustentá-los em termos universais, escorregando nas limitações do campo da psicanálise. Aí temos outro problema de tradução. Traduzir as palavras freudianas. Há quem se encarregue disso como um mandamento ou há quem se encarregue disso como uma subversão. Não sei. Mas a tradução de Luto e Melancolia feita por Butler pareceu um tremendo trabalho impossível. Portanto, precioso! Nesses muitos sentidos, penso, não seria o Complexo de Édipo um texto que nos ajuda a pensar na experiência colonial de gênero?

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(1)  Como canta Marisa Monte em Infinito Particular. Composição: Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, 2004.

(2)  Lacan, 1953/1998.

(3)  Butler, 1999/2018. 

(4)  Idem.

(5) Tupinambá, 2017.

(6)  Freud, 1924/2016.

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Referências

Butler, J. (1999) Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira, 2018. 

Freud, S. (1924) O declínio do Complexo de Édipo. In: Freud, S. Neurose, psicose, perversão. Autêntica, 2016.

Freud, S. (1917) Luto e melancolia. In: Freud, S. Neurose, psicose, perversão. Autêntica, 2016.

Gonzales, L. (1983) Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Rios, F.; Lima, M. Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar, 2020.

Lacan, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos. Jorge Zahar, 1998.

Tupinambá, G. O desejo da psicanálise. Boitempo, 2017.









 
 
 

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