Cavalos da linguagem
- Vanessa Felix dos Santos
- 9 de out. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 14 de nov. de 2024
Vanessa Felix dos Santos

Quem chega? Esta é uma pergunta para que, quem chegou sem se apresentar, se apresente. É o Zeca Chapéu grande? Santa Rita Pescadeira? Cosme? Damião? Bibiana? Belonísia? Tal pergunta se faz necessária na atualidade, posto que algumas candidatas ou candidatos à análise atropelam a apresentação de si, excluindo, por vezes, até mesmo o nome próprio. Se o eu é muitos, excluir uma de suas facetas é uma operação mutilante.
A pergunta quem chega? implica a falante naquilo que fala e nos informa de uma incorporação, a de que somos, numa analogia à expressão cavalos de santo, cavalos da linguagem; somos incorporados e manifestados por ela. Falando nisso, prazer, Vanessa Felix, psicanalista amefricana, falante no mundo dos vivos, a falar como consigo, com o acréscimo de, na maioria das vezes, uma sensação de estar de fora. E aqui já se abre uma questão. Fora de onde? Do quê? Da linguagem? Temos visto que não há possibilidade de habitar o fora da linguagem. Porém, a angústia de estar de fora algo nos diz. A angústia como sendo o afeto que não engana, diz “tem algo de teu aí”.
“Falem como conseguirem!”, foi a intervenção pública necessária da psicanalista Eliane Marques (comunicação pessoal, 2023) para que se atenuassem em mim certas “lutas intestinais” das quais fala Fanon, quando a negra, o negro, precisa, estando fora de casa, “confirmar seu ‘ser diante de um outro [...] ’” (Fanon in Debieux; Faustino, p. 12, 2023). Como falar, o que falar diante deste outro? Se eu falar, o que o outro vai achar? E se este outro for branco? E se for negro? Então, é como se Eliane tivesse dito: não há ser falante, negro, branco, indígena, fora da linguagem, portanto, o que resta é falar como conseguimos.
Entrando no romance Torto arado (2019), de Itamar Vieira Junior, da recusa da mãe por aceitar a obrigação religiosa, Zeca herda o compromisso de assumir o que ela rejeitou. Herda a dívida materna. Nas festas do jarê, religião de matriz africana praticada em meio rural, na região da Chapada Diamantina, Bahia, Zeca é o curandeiro das dores do corpo e da alma tanto dos donos das fazendas como do povo trabalhador, filhas e filhos de ex-escravizadas/dos, num contexto em que a relação colonial é mantida em situação não muito diferente da da escravidão. Zeca Chapéu Grande é o pai de Bibiana e Belonísia, irmãs unidas e ao mesmo tempo separadas por um acidente envolvendo uma faca encontrada dentro de uma mala guardada embaixo da cama da avó. Uma dupla unida pelo ventre de Salustiana, a mãe, e separadas pela faca da avó Donana. Zeca é um pai presente, contrariando as inúmeras infâncias brasileiras. Belonísia, a filha mais nova, quer ser como ele: arar a terra e cultivá-la, colher os frutos, permanecer nela reconhecendo a dignidade de quem tem o saber de produzir e regando a indignação pela exploração do seu povo. A mais velha, Bibiana, pensa em ir para a cidade estudar, se tornar professora e retornar com propostas de resistência às opressões sofridas pela comunidade quilombola da fazenda Água negra.
Divididas por um corte acidental em que Belonísia perde a língua e passa a necessitar da leitura, tradução e transmissão de Bibiana, as duas se unem através de um lúdico e real telefone sem fio e uma passa a falar pela outra: uma precisa dizer em gestos e expressões corporais e a outra ler a língua íntima e misteriosa da irmã e passar adiante. Dá para dizer que quando a divisão adiciona, confunde a aritmética. Já quando a divisão divide, numa alegoria, a faca é a linguagem e o corte que ela produz é a separação, a divisão subjetiva das subjetividades-irmãs. Podemos pensar que, embora sejamos os cavalos na relação com a linguagem, quem nos abocanha e morde é a linguagem. É ela quem nos olha, através dos objetos do mundo, e nos leva à boca. Nos baba com a boca já cortada e com dentes faltando. Antes de nascermos, ela já se banhou no caldo faltoso, barrado, cortado e nos lava na mesma água.

O itan Erinlé tem a língua cortada por Iemanjá (Prandi, 2001, p. 130) fundamenta a cena iniciática e o desenrolar da vida das duas irmãs em Torto arado e nos ajuda a perceber que nem Erinlé, nem Iemanjá e nenhuma de nós consegue controlar a linguagem. Para que Erinlé não saísse falando por aí os segredos de Iemanjá, ela corta a língua do amado. O ato de cortar a língua não nos livra de respondermos a partir desta “entidade” que nos possui. O sacrifício de oferecer a língua alheia ou a própria, cortar a língua do outro para fingir que não é conosco, são tentativas de ludibriar para não nos pôr em diálogo com o Outro e com a pergunta: que queres de mim?
Diz o itan:
Erinlé era o mais belo dos caçadores. Diziam que era andrógino, mas disso não se tem certeza. O que se sabe é que Inlé era dono de uma beleza diferente e irresistível. Tão belo que Iemanjá o amou assim que o viu. Apaixonada, o raptou e o levou para o fundo do mar. Satisfeitos os seus desejos, Iemanjá se cansou de Erinlé. Então, Iemanjá o devolveu ao mundo. Mas Erinlé tinha visto os mistérios do mar e passara a conhecer os seus enigmas. Para que Erinlé não contasse os seus segredos, Iemanjá cortou a sua língua. A partir de então, é Iemanjá que responde por Erinlé. Erinlé fala por intermédio de Iemanjá. Erinlé é o mais belo dos caçadores. Desesperada, Iemanjá quer controlar a língua de Erinlé para que algo de seu – dela – não se revele, sem saber que pode tropeçar na própria língua e trazer na sua fala, confidências de si mesma. Só que um grande mistério já fora revelado aos mundos: o de que Iemanjá amou Erinlé. O grande mistério de (a)mar. Erinlé, mesmo sem língua, fala tirando o véu da amada.

Belonísia também perde a língua e fala o tempo todo no romance baiano. Perder a língua e mesmo assim falar, nos distancia da anatomia e da deficiência e nos aproxima da possibilidade de aparição da sujeita do desejo. Fenômeno diferente acontece com a população amefricana que, ao perder a língua-mãe na diáspora africana, se melancoliza, ruína a si mesma e rumina a perda. Mama África nos lambeu, nos libidinizou, mas não foi o suficiente: queremos ter a língua, somos reis e rainhas. Dá-nos a coroa! Se, por um lado, não podemos falar eve-fon, yorubá, quimbundo, árabe, por outro, enquanto falantes de uma língua, muitas de nós não falamos. É o caso de ter a língua (músculo e idioma) e não falar. Aqui, aproximo para, em seguida, diferenciar língua e linguagem. Com a primeira, podemos nos dizer dominadores e falantes (mesmo sendo a do colonizador!), porém com a linguagem, ao tentar controlá-la, dominá-la, ela escapa da dominação e ao abrirmos a boca, podemos não falar porque não damos ouvidos aos lapsos, às trocas de letras, de nomes, e dizemos serem erros banais, erros gramaticais, tropeços sem valor e nos desculpamos, descartando como lixo o que a psicanálise recolhe como digno de ser escutado. Lélia González também recolhe o lixo, o que foi jogado pelo social e o reposiciona ao estatuto de falante: “o lixo vai falar”, “numa boa” e com todas as implicações (González, 2020, p. 77 e 78).
Na clínica, podemos encontrar sujeitos que recentemente começaram a falar, surpreendidos aos 43 anos de que nunca haviam falado; falantes que falam, falam com o objetivo de não falar, erguendo um muro de palavras para tamponar o vazio, o silêncio.

Encontramos analisantes negras em Améfrica que não falam porque terão de escutar a si e falar é se posicionar diante do grande Outro, sem saber que não falar também se trata de posição. Encontramos aqueles que incorporaram os signos do discurso racista que diz que negros não sabem falar (a série segue com podem até cantar e dançar, mas não escrever, como nos revela Conceição Evaristo em uma de suas entrevistas). Encontramos brancos em Améfrica que dizem: eu não posso falar… a ti, analista negra. Por quê? Porque falar é passível de denúncia de si assim como de enunciação. Não falar à analista negra é uma falsa ideia de cuidado antirracista do branco na condição de analisante. Na feitura do bem à analista, ele paga não falando. O que ele acha que a analista poderia escutar, se ele falasse? Não há escapatória, o que resta é falar.
Há duas grandes tortuosidades que o arado de Belonísia nos revela: a de que escrever é também campo da fala e da linguagem. E a de que o seu arado arrastou e roçou a terra, riscando e escrevefalando em língua própria.
*Texto produzido para o fechamento do ciclo 2023 do Seminário de Formação em Psicanálise da Après Coup Porto Alegre – Psicanálise e Poesia.
Referências:
Faustino, Deivison Mendes; Rosa, Miriam Debieux (2023) O mal-estar colonial: racismo, indivíduo e subjetivação na sociabilidade contemporânea. Dossiê PSICOLOGIA SOCIAL E ANTIRRACISMO: compromisso social e político por um outro Brasil • Psicol. Soc. 35 • 2023.
González, Lélia (2020) Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Org. Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª ed. - Rio de Janeiro: Zahar.
Petter, Margarida Maria Taddoni (2005) Línguas africanas no Brasil. Niterói, n. 19, p. 193-217, 2. sem. 2005.
Prandi, Reginaldo (2001) Mitologia dos orixás. 1ª ed. - São Paulo: Companhia das letras.
Vieira Junior, Itamar (2019) Torto arado. 1ª ed. - São Paulo: Todavia.
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