top of page

Saberes não cumulativos

  • Foto do escritor: Thomaz Chaves Della Vechia
    Thomaz Chaves Della Vechia
  • 30 de abr.
  • 6 min de leitura

Thomaz Chaves Della Vechia



Algo muito bonito que a psicanálise nos oferece é a infinita variação de experiências que podem resultar, a posteriori, em caminhos formativos para um analista. Fazemos escolhas, integramos instituições, formamos e encerramos coletividades, descobrimos muitas músicas e alguns livros, temos encontros de vários tipos, até dos mais fortuitos e, quando nos damos por conta, tudo isso fez parte de um tornar-se analista que, em muitos sentidos, nunca se conclui. A formação não se reduz à transmissão de conceitos, à soma de horas de análise, supervisão e clínica. Ela também se dá ao redor de tudo aquilo que vivemos para, afinal, sustentar o desejo por um ofício cujo tempo de consolidação não se regula com as urgências da reprodução da vida, da fome, do sono, das contas pagas.

Estamos advertidos de que o aspecto inconforme e aberto das formações é problemático quando interrogado por ciências e saberes mais protocolares, às vezes interiores à própria psicanálise, em seus setores mais rígidos. Mas há, curiosamente, uma sustentação coletiva e heterogênea em relação à opacidade da formação do analista porque, ao que tudo indica, o fazer clínico assim exige. Em outros termos, a clínica parece se beneficiar dessa imprecisão que, simultaneamente, nos atinge e liberta.

A escuta analítica não é uma prática garantida pelo domínio teórico, por herança familiar nem pelos anos de experiência, ainda que todas essas coisas tenham seu valor e sejam, em algumas circunstâncias, até bem determinantes. No entanto, algo resta incalculável, quase acidental, informando que a psicanálise deriva também de saberes não cumulativos, fugazes como aparições, cujas tentativas de concentração mais pulverizam do que unificam uma experiência que, no limite, precisa se perder para se ganhar.

O que uma análise torna pensável só o é pelo que decorre do encontro que se dá numa cena particular e temporária. O trabalho com um paciente não ensina tudo a um analista, mas deixa algo com ele, um traço, uma memória, uma palavra. Do mesmo modo, como analistas não temos o objetivo de ensinar, ainda que haja uma transmissão. Por isso é difícil definir, com a longevidade de um trabalho que perpassa tantos anos e encontros, o que cada análise que participamos fez valer para as outras. Como é possível que o trabalho de escuta nos dê um ganho que não resulte em uma acumulação?

Como Laurence Bataille¹ bem disse, quanto mais tentamos ser analistas, a partir da encenação do que ele deve fazer ou dizer, menos nos aproximamos do que a clínica verdadeiramente exige, que não é o analista, mas a escuta. Quando essas coisas se confundem, tentamos encarnar o personagem analista, inflando a importância do acúmulo de insígnias que atestem essa posição e, assim, nos afastamos da premissa de que o analista deve ocupar uma função, não apenas uma imagem. E essa função decorre, de modo mais preciso, do não-saber que, apesar de ser um fundamento da clínica, é também uma posição que só se ergue a partir de uma relação sustentada com muitos saberes, psicanalíticos ou não. O esvaziamento que a escuta exige provém, portanto, de um saber-perder aquilo que as nossas teorias e métodos antecipam; o que de maneira nenhuma as torna prescindíveis mas, sim, companhias que devemos saber a hora de dispensar.


Agora, ser analista está em alta, assim como oferecer, a partir desse lugar, respostas analíticas aos enigmas políticos, culturais e clínicos da cultura. Encarnar essa figura, usufruir de seu inventário de conceitos e não desmontar o seu semblante vem se apresentando como um modo disponível de representar o psicanalista. Mas será que a psicanálise pode explicar tanta coisa assim? O Instagram está cheio das nossas contribuições (me incluo nesse grupo, e por isso me pergunto: a pedido de quem?) e isso, além de sinalizar conflitos de classe e de  mercado, também reflete o imaginário que a psicanálise e seus personagens têm acionado.


É chamativo que o alargamento das zonas de interesse da psicanálise nem sempre esteja aliado à urgência de democratizar e viabilizar suas práticas mas, sim, à cristalização do consultório particular como seu habitat natural, como local privilegiado de sua realização. Até mesmo esse modo de trabalho, no entanto, exige movimentos que nos levem até a rua, aos amigos, aos parceiros de pensamento, com quem formamos as coletividades que, na contramão do acúmulo, conduzem a partilha do saber. São esses encontros que formam um intervalo entre um analista e a sua experiência viva, quando algo pode ganhar registro e inscrever um saber.


Em muitos momentos, conto para alunos e supervisionandos histórias da psicanálise que não se resumem aos seus settings tradicionais — seu trabalho no SUS, em políticas públicas de muitos países, em contextos de guerras, catástrofes, conflitos de migração. Sou recebido com surpresa, às vezes espanto. A novidade é de que ela não é necessariamente um tratamento das “profundezas”, que se dirige com prioridade à “origem dos problemas”, coisa que custa “muito tempo e muito dinheiro”. O argumento de alguns avança na direção de que a lógica da análise não seria “conveniente” ao aparelho público, aos serviços de saúde ou de assistência que demandam rapidez e agilidade na resolução de conflitos, sintomas ou sofrimentos.


Acredito na importância de disputar a veracidade dessas afirmações, ainda que descrevam com certo sucesso uma versão da psicanálise. Ao meu ver, nosso campo não ganha assim sua melhor caracterização (de acordo com os leitores de Lacan, aliás, seria mais adequado dizer que ela se dedica ao superficial), assim como podemos pensar que as demandas que recebemos não são necessariamente de maior rapidez. Não que o ritmo de urgência no qual se trabalhe não seja um problema mas, quando escutamos um pouco mais, vemos que o breque que a psicanálise causa nesses regimes é uma intervenção bastante importante.

Sua inconveniência pode ser uma de suas dádivas: seja onde for, existem incômodos necessários para a instauração de um intervalo ali onde o tempo que corre mostra-se ensurdecedor em relação às demandas daqueles que procuram pelo acolhimento de suas questões. O problema é outro: quando a psicanálise tenta se fazer conveniente, ajustada. Psicanálise às ordens! Imagina só… Acontece que essa inclinação para a transformação, para a indisciplina diante dos ordenamentos normativos e para o contato com preocupações políticas não é uma posição consensual em nosso campo. Mas é a maneira como quero (e como convido a) participar da disputa sobre o lugar da psicanálise.


Remontar os diferentes fazeres possíveis que emergem de uma mesma matriz exige o reconhecimento de suas diferentes implicações. É incorreto afirmar que trabalhar com a lógica do inconsciente se mostra incompatível com a acumulação e a retenção. Esses aspectos econômicos emergem como uma sintomática em muitos casos clínicos, mas também, de modo mais amplo, como um sintoma da própria psicanálise enquanto prática advinda das demandas sociais e culturais do seu tempo. E se o nosso tempo investe na riqueza e no acúmulo como significantes de seus ideais e de suas formas de gozo, é certo que na psicanálise também encontrarão ressonância.


Por isso, insisto em interrogar a disposição ao acúmulo, seja financeiro ou intelectual, facetas de uma mesma lógica contábil. Meu argumento também tem uma intenção inclusiva, de abertura das portas da psicanálise para quem não pôde contar com acúmulo algum, nem deve precisar disso para se fazer escutar e participar. E, aqui, defino participação não apenas como o testemunho e o consumo de suas produções, mas também a construção de seu pensamento, teoria e prática.


Quantos de nós, no corre para possibilitar a clínica, não foram dar aulas de dança ou inglês, fazer freelas em bares, tirar fotos de casamentos ou vender sanduíche na faculdade? Às vezes, muitos vínculos de trabalho são necessários para que um psicanalista possa consolidar sua prática. Incluo tudo isso não como obstáculos, mas como episódios de uma formação analítica – sem deletar as aventuras nas quais nos lançamos no processo, mas também sem tomá-las como um somatório que dá mais ou menos validade a determinada trajetória.


O que são, por fim, saberes não cumulativos? São as coisas que aprendemos, esquecemos e aprendemos uma vez mais, já de outro modo; as canções que nos emudecem para fazer falar em nós o inédito e o evanescente; o conhecimento teórico que pode, como Radmila Zygouris nos diz, “num analista apaixonado, transformar-se em palavra viva, atravessar seu coração, e sair numa língua desconhecida”²; a imagem de um grupo de amigos em busca de um cigarro, porque são matilhas como essa que alargam o mundo; a loucura causada por uma paixão, que depois cede e ainda insiste. É a vida que se relança em nossa palavra antes que a reconheçamos.


Referências

¹ BATAILLE, L. (1988). Desejo do analista e Desejo de Ser Analista. In: O Umbigo do sonho: por uma prática da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

² ZYGOURIS, R. (2013). A escola da Rua. In: Diálogos sobre formação e transmissão em Psicanálise São Paulo: Zagadoni, 50-65.

A fotografia da capa é “Das Schimmer”, de Hannes Wellrafen e as pinturas são da série “Deimos”, de Dragan Bibin.


 
 
 

Comentarios


bottom of page