Dona da casa me dê licença
- Juliana de Souza Carvalho

- 11 de nov.
- 8 min de leitura
Atualizado: há 6 dias
Texto escrito por Juliana de Souza Carvalho *

Nas tradições de matriz africana que ainda resistem no Brasil a referência e reverência aos mais velhos faz parte dos fundamentos que têm a ancestralidade como importante bússola para a vida que entende-se não se encerrar na morte. Como deixou o escritor Nêgo Bispo, somos início, meio e início. Uma ideia confirmada pela filosofia de Sankofa, famoso Adinkra (sistema de comunicação em símbolos que representam uma mensagem ou provérbio) que diz da importância de voltar ao passado e buscar referenciais para construir futuro e seguir seu caminho.

No samba de roda, tradição da cultura popular, há o costume de iniciar os movimentos dos mais velhos para os mais novos, mais precisamente das mais velhas. Uma cantiga comum de ser cantada nas aberturas dessa tradição para dar início ao que se chama de “correr roda”, diz: dona da casa me dê licença, me dê seu salão para vadiar. Um pedido respeitoso de permissão para usar o espaço da outra pessoa, uma mais velha, para sambar.
Conheci o samba de roda numa feira de mulheres organizada por um coletivo de psis. Nessa ocasião palestrei ao lado de uma amiga sobre questões raciais, as conquistas e lutas femininas; um evento forte e belo que para seu encerramento contou a presença do grupo Sambadeiras do Cerrado. Era a segunda vez que aquela sensação de arrepios e encantamento me preenchiam o corpo ao escutar as batidas do tambor, uma estranha sensação de que ali havia algo meu que eu ainda desconhecia. Num contexto de educação marcada pelo monoteísmo cristão, tudo aquilo que me remetia a outras práticas religiosas era facilmente repelido, até aquele instante. A presença dos atabaques, ojás, saias rodadas de chita podem remeter com facilidade aquilo que no imaginário social se reproduziu como sendo “da macumba” no sentido mais preconceituoso e logo rechaçado. Ali se encontravam esses elementos. Mas aquela sensação insistia em pulsar e dali em diante uma aproximação amparada por certa curiosidade antropológica me possibilitaram ingressar no grupo das Sambadeiras do Cerrado, onde se aprende um tanto sobre o samba de roda, suas matrizes e fundamentos que estão presentes tanto na cultura e cotidiano dos brasileiros como dentro dos terreiros e ilês.

Apesar do constante esforço de apagamento, a história brasileira resiste um tanto nas bases, costumes e tradições que pessoas negras em diáspora conseguiram manter e transmitir. Isso inclui as práticas religiosas de matriz africana que estão presentes antes mesmo das ações, estão na ponta da língua.
E, se levamos em conta a teoria lacaniana, que considera a linguagem como o fator de humanização ou de entrada na ordem da cultura do pequeno animal humano, constatamos que é por essa razão que a cultura brasileira é eminentemente negra. E isso apesar do racismo e de suas práticas contra a população negra enquanto setor concretamente presente na formação social brasileira (Gonzalez, 2020, p. 55).
Nos estudos raciais sócio históricos brasileiros chama atenção a maneira como movimentos de luta (MNU, feminismo negro) subverteram a lógica do discurso dominante retomando para as lutas certos significantes e os positivando a serviço de políticas de reparação histórica como cotas e ações afirmativas. Se dizer negro (conjunto de pretos e pardos de acordo com o IBGE) passa a ser uma afirmação que reposiciona o eu e o outro a partir da nomeação que não mais confunde e aliena, mas constroi identidades políticas plurais. Tal processo de afirmação de identidade foi alvo de críticas pelo possível identitarismo, que na teoria psicanalítica também ganha seus questionamentos pela noção de sujeito do inconsciente e pela crítica à lógica identitária e narcísica que leva massas semelhantes a atos terríveis contra os que consideram ser diferentes (Freud, 1921).

A questão a ser pensada num país construído a base do apagamento de elementos da identidade afrodiaspórica e indígena a fim de sustentar o mito da democracia racial, é que desconsiderar a relevância da afirmação das identidades negras pode estar a serviço dos senhores da casa grande na manutenção de desigualdades, como lembra Audre Lorde (Lorde, 2019). A psicanalista e escritora Taiasmim Ohnmacht (2025), bem disse que assumir que não somos todos iguais é fazer o importante exercício de nomear, sendo a nomeação responsável por revelar brechas no que se apresenta como uma continuidade pacífica. Essa é a importância da palavra "racismo", pois este implica relações de poder, estabelecidas social e historicamente, pautadas justamente por traços fenotípicos e/ou por identidades de origem. Nomeação e afirmação de identidades, no contexto brasileiro, podem estar a serviço da alteridade.
A possibilidade da construção de uma identidade negra como saída da engrenagem de auto-ódio passa pela tomada de consciência da realidade social do racismo, no sentido de compreender que a sensação de menos-valia que por vezes comparece para pessoas negras não é uma característica pessoal, mas um efeito de um discurso hegemônico racista sobre pessoas negras (Veiga, 2021). No entanto, ainda quando uma pessoa negra está convicta do seu senso de valor, se orgulhando daquilo que compõe suas características singulares, culturais e coletivas enquanto negra, os episódios racistas acontecerão atualizando o impacto da violência racial sobre o sujeito. Localizar o objeto de nossa angústia não nos ajuda a dissolvê-la, pois neste caso, o racismo não cessa de se inscrever.

Parte das manifestações de religiões de matriz africana carregam elementos que também compõem a identidade de coletivos negros. Acontece que esse ser negro no Brasil é um significante que encerra vários significados, remete a tudo aquilo que está nas posições socialmente inferiores, que estão aquém. Uma letra inscrita na pele e no sujeito, que dá a estes uma condição. Das entidades representadas por roupas coloridas e adereços, roupa branca às sextas feiras, pelas guias no pescoço, é justamente sob esses símbolos marcadores de identidade que na interpretação hegemônica opressora, a violência do racismo religioso se manifesta, mesmo o sujeito que os carrega não sendo negro, pois a questão identificada são elementos da negritude alvo do racismo mesmo na falta da pele escura. O racismo estrutural presente na linguagem toma a cor da pele e tudo o que a ela faz referência como ponto de diferença e exclusão, incidindo sobre aqueles que habitam um corpo que carrega caracteres negros significados totalitários que desconsideram a singularidade.

Dados do canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Disque 100, publicados em matéria em fevereiro de 2025 na CNN Brasil mostraram que religiões de matriz africana representam o maior número de ocorrências de intolerância religiosa no país, número que praticamente dobrou de 2023 para 2024. Em paralelo, na última década se registrou também o crescimento vertiginoso de pessoas que se declaram pertencentes a religiões características por práticas mais totalitaristas. Deixemos os dados à reflexão de alguma associação entre os fatos.
Por vezes, são as casas de asé que acolhem corpos excluídos, as existências dos considerados transgressores. São esses espaços com seus dirigentes e irmãos de santo que cuidam daqueles que a sociedade não quer ver ou se ocupar. Antes mesmo das pautas sociais tornarem-se interessantes aos ditos progressistas e virarem campo de disputa de narrativas, terreiros já lidavam com questões de gênero, raça e classe. Ora, um trabalho semelhante ao que um analista faz com as palavras, com o que resta, quando se interessa justamente por aquilo que o próprio sujeito por vezes não vê valor.
No início, ocupei no samba de roda uma posição de quem observa os ditos, quase a replicar algo da escuta psicanalítica, mas que nesse meio – além da escuta da transmissão de conhecimentos sobre fundamentos que também se dá essencialmente pela oralidade –, passa um tanto pela atenção em ver como as mais velhas fazem para que se possa fazer também. Não na imitação, mas no cuidado com os fundamentos, assim encontrando um estilo próprio de sambar. Me parece um tanto com o fazer clínico, onde aproveitamos da técnica psicanalítica para desvelar caminhos a fim de que o sujeito escute os fundamentos do seu próprio inconsciente e saiba caminhar, dançar com ele de forma interessante à sua maneira.
É certo que para fundamentar a criação da psicanálise, Freud não se ocupou com os efeitos da colonização, como lembra a autora e psicanalista Taiasmin Ohnmacht. No entanto, perpetuar práticas psicanalíticas sem nos ocuparmos dos efeitos que a raça traz sobre os sujeitos é nos mantermos silenciosos e mantenedores de uma psicanálise nada pertinente à situação brasileira. Mas “[...] o silêncio não é capaz de tapar todas as fendas, e há fendas no corpo psicanalítico” (Ohnmacht, 2025, p. 32). O que temos feito destas fendas? Qual posição ocupa a psicanálise frente ao racismo e suas manifestações? Diante disso, me parece interessante pensarmos a posição daqueles que levam a psicanálise adiante, seja ela de qual predileção autoral for, a posição dos psicanalistas.
Numa associação de cadeia representativa não será incomum se a noção de psicanalista remeter a imagem de um homem branco de meia idade sentado em uma poltrona com cara enigmática diante de alguém que lhe endereça um dito. Será fácil que em uma pesquisa os algoritmos entreguem a imagem de mulheres brancas para responder a pergunta “me mostre psicanalistas perto de mim?”. Se a cor do inconsciente – com licença da minha mais velha, Isildinha Baptista Nogueira (2021) – aparece como questão a ser ou não levada em conta pelos analistas, não há dúvidas quanto à imagem da maioria daqueles que se propõem a escutá-lo. Isso não é sem efeito.
A ideia de um suposto saber sustenta o que faz com que uma pessoa confie na figura do analista a sua história, e é importante que o analista sustente, em certa medida, a posição de quem sabe. Sabe algo que pode conduzir a análise dessas pessoas a um saber sobre elas mesmas. Se há nessa posição um saber, de que saber se trata? O que sabem os analistas que os suportem a escutar pessoas que por anos não puderam falar? Se nos importa desvelar qual a posição do sujeito que nos fala, nos importa também saber a partir de qual posição estão (epistemológica, social) os analistas que escutam – sem pretensão alguma de encontrar qualquer resposta que não passe por diálogos consideráveis sobre tais questões. Estamos presenciando instituições psicanalíticas brasileiras se ocupando, finalmente de, para além de reconhecer, tratar a respeito das desigualdades raciais que chegam em seus portões através de vagas de ações afirmativas em eventos, descontos em percurso de formação, convites para que autoras negras que há anos produzem com rigor sobre o tema possam enfim serem ouvidas em seus trabalhos. Trata-se do início.
A colonialidade e sua cosmologia moderna da branquitude promoveram e promovem inúmeros equívocos, apagamentos históricos e desmentidos em relação aos quais o exercício da psicanálise não é neutro, e nem poderia, pois em um contexto de grande desigualdade racial e social a dita neutralidade repousa silenciosamente sobre o poder (Ohnmacht, 2025, p. 22).
Apesar de termos de lidar com a máquina mortífera do racismo, pessoas negras seguem produzindo realidades e modos de vida impossíveis considerando o cenário em que vivemos (Veiga, 2021, p. 28), isso porque também existem os tambores (Ohnmacht, 2025), as mais velhas, os dispostos, que em coletivo não nos deixam ser totalmente capturados. Então, que tomemos os salões para vadiar.

Referências
Cardoso, Alan. Intolerância religiosa no Brasil cresceu mais de 80%, diz estudo. CNN, 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/intolerancia-religiosa-no-brasil-cresceu-mais-de-80-diz-estudo/
Freud, Sigmund. Obras completas volume 15: Psicologia das massas e análise do eu [1921]. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
González, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Org. Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
Lorde, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Autêntica, 2019.
Nogueira, Isildinha B. A cor do inconsciente: Significações do Corpo Negro. São Paulo: Perspectiva, 2021.
Ohnmacht, Taiasmin. Também existem os tambores: Outras gramáticas entre racialidade e psicanálise. São Paulo: Discurso, 2025.
Veiga, Lucas Motta. Clínica do impossível: linhas de fuga e de luta. Rio de Janeiro: Telha, 2021.
*Juliana de Souza Carvalho é psicóloga e psicanalista, especialista em Psicanálise e Laço Social na área de Saúde Coletiva pela PUC-GO, membra idealizadora do Conexões Afro-Brasileiras, conselheira no Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial COMPIR Anápolis.




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