A arte como ferramenta de encantamento
- Isabela Alves
- 26 de jul. de 2021
- 4 min de leitura
Um 25 de julho preto, indígena e artístico.

Há muito tempo não escrevo sobre ser uma mulher negra. Minha identidade está imbricada em todos os meus enraizamentos em outros campos, como a sexualidade, a arte, a escrita, os sonhos. Ser negra, hoje no Brasil, é um desafio constante, para além da conjuntura política que não favorece nenhuma corpa[1] existente, é necessário que nos lembremos que o contrário da vida é o desencatamento.
Ano passado fui convidada pelo Fundo de População da ONU para compor uma obra em homenagem ao dia 25 de julho, dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. O convite foi muito importante e veio de surpresa, a ONU entrou em contato com meu trabalho no início de 2020, quando fiz uma viagem a trabalho para Brasília e tive a oportunidade de visitar a ONU Mulheres. Inclusive, esse trabalho foi realizado para o coletivo de mulheres negras quilombolas da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos.
A felicidade foi imensa ao saber que teria uma obra minha veiculada no maior órgão mundial de proteção dos direitos humanos. E que a liberdade artística seria respeitada, que eu seria valorizada. O que me deixou segura de estar fazendo o caminho certo foi, justamente, ter chegado até a ONU através de mulheres negras. Nós sempre construímos para o coletivo, a comunidade. E quando uma alcança um sonho, as outras veem a possibilidade de sonhar.
Certamente, não foi diferente com Teresa do Quaritetê, vinda da região de Benguela. Ela era rainha do quilombo das margens do Rio Guaporé, em Mato Grosso. Teresa é a razão do dia 25 de julho. Em seu quilombo, abrigava pessoas negras, indígenas e mestiços de negros e indígenas, mostrando a necessidade da união e de se fazer luta juntos. O dia 25 é a celebração da possibilidade de vida e resistência, da retomada dos nossos quilombos de corpo, de mente e espírito.
Eu, Isabela Alves, sou uma mulher negra de ascendência indígena e interiorana. Minha avó, por parte de pai, foi nascida na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, território majoritariamente indígena. Infelizmente, a colonização cumpriu seu papel ao apagar nossas histórias e registros, e hoje temos apenas nossa pele, nosso traço e nossa espiritualidade para conseguir retomar de onde viemos. A negritude não é apenas o que me define, minha ancestralidade indígena está aqui latente, firme no meu peito.
Por isso, ao celebrarmos nossas conquistas, nossos reconhecimento e nossos alcances no dia 25 de julho, precisamos sempre retomar que a rainha Teresa de Quaritetê protegia e potencializa as narrativas pretas, indígenas e mestiças no seu quilombo. Na sua morada.
Dos enraizamentos, a arte sempre foi minha expressão principal de sentimentos. Inclusive, em terapia, compreendi que ao tomar contato mais profundo com a minha feminilidade, a arte passa a se encaixar no lúdico, e não mais no desaguamento[2]. E esse entendimento de que a arte é fundamental para minha manifestação no mundo, e que através dela eu consigo tocar pessoas, chegar em lugares, provocar emoções, muito me faz questionar: o que é a arte para pessoas negras? E, qual o papel da arte no combate ao racismo?
A dissertação de mestrado do Hélio Menezes, curador e pesquisador de arte negra brasileira, busca compreender o que seria a arte negra. O que diferencia a arte negra da arte branca e da arte indígena? Como classificar uma arte negra? Menezes traz diferentes tentativas de conceituar a arte negra, e existe uma chave que sempre se repete: a fonte de inspiração, a autoria e a estética. Assim, para alguns, arte negra era tudo aquilo que remetia às culturas de matriz africana; para outros bastava a artista ser negra, e por fim, não importava a autoria se houvesse um aspecto estético “negro”. Hoje, percebo que temos uma retomada da negritude através da arte, compreendendo que a arte foi uma das principais ferramentas de luta e resistência dos povos diaspóricos na travessia do Atlântico.
Não existe axé sem arte.
Os Orixás, deuses africanos que representam energias da Natureza, precisam de arte: pinturas, música, dança, cantos, festivais, para seguirem seu reinado e dar bênçãos aos humanos. E foi por meio do culto aos Orixás que valores africanos se tornaram valores afro-brasileiros, além de se condensarem nas cosmologias indígenas que também têm seus deuses, suas músicas, seus cantos e suas festas. A separação de arte x religião x matriz x autoria é branca e europeia, numa tentativa errada de fragmentar aquilo que deveria sempre permanecer junto: nossa subjetividade.
O encantamento – conceituado por Luiz Simas – processo de resistência dos povos negros e indígenas no Brasil, que se faz através das manifestações cosmológicas (ou filosóficas) ilustra exatamente isso: não é necessário separar nada. A arte, para nós corpas negras e indígenas, é um campo de conhecimento para a manutenção da vida. E a vida é a nossa comunidade, encadeada de relações afetivas e a Natureza, que nos dá comida, água, espiritualidade em troca de cuidado.
Então, quando me coloco enquanto uma mulher negra artista, ou escritora, ou colagista, ou comunicadora, ou criativa, no fim há uma redundância. Ser uma pessoa negra no Brasil é estar condicionada a um estado artístico, que requer uma abstração dependendo do contexto, e também em um estado de completo alerta: a morte bate na porta, chega por bala, por COVID ou por fome.
A arte é uma forma de fugir de um outro tipo de morte, o apagamento simbólico, epistemicídio, o genocídio e todas as violências cotidianas que os corpos e as corpas pretas são obrigadas a passar. A arte como brecha e respiro para que nós, mulheres pretas, sigamos cultivando e contribuindo com a nossa comunidade.
Notas de Rodapé:
[1] Algumas pessoas se referem a corpos fora do espectro binário, ou da heterossexualidade, como corpas, se opondo a figura logo imaginada da palavra corpo: branco, magro e masculino.
[2] Desaguamento é uma imagem para ilustrar o processo de desabafar, chorar, se expressar, através da arte. É a simbologia do desaguar, deixar a água fluir.
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